24 de mar. de 2020

O Interrogatório


Lembro de escrever este conto quando minha mãe assistia muitas séries policiais. Sempre me pareceu absurdo que as pessoas se lembrassem exatamente de detalhes depois de dias, meses e até mesmo anos. Eu? Às vezes até mesmo confundo a esquerda com a direita.




O Interrogatório


- Ah? (surpresa)
- Onde você estava na noite de 16 de Janeiro? (intimidante)
- Ah? (confusa)
- 16 de Janeiro? Onde você estava na noite de 16 de Janeiro. Seu álibi... (mais intimidante)
- Álibi? (surpresa e confusa)
- Sim. Pode nos contar o que fez nesta noite? (impaciente e intimidante)
- Mas se eu nem me lembro o que comi ontem! Como vou lembrar o que fiz em Janeiro passado? (pasma, revirando os olhos)
-  Então a senhora não tem um álibi? (animado)
- Devo ter, mas se não lembro o que fiz como vou saber qual meu álibi? (segura e pensativa)
- A senhora costuma passar na Rua X? (voltando ao intimidante)
- Passo sim, de vez em quando... Ou seria na rua Y.... (pensativa)
- E dobra a direita a caminho de casa, certo? (esfregando as mãos)
- Direita? Não é à esquerda? Qual direita o senhor tá falando? (olhando para as próprias mãos interessada)
- existe uma direita, minha senhora. (surpreso)
- Pro senhor, sim, mas pra mim tem duas que sempre confundo as mãos. (Explicando embaraçada, as duas mãos ao alto acenando freneticamente. Jazz hands.)
- Minha senhora, se não puder nos dar um álibi seremos obrigados a detê-la. (decidido, ameaçador e um tanto confuso)
- Pelo que? Falta de memória ou porque confundo as direitas? (batendo o direito, ou foi o esquerdo... e olhando feio)
- existe uma direita, senhora. Pode agora, por favor, nos responder onde estava na noite de 16 de Janeiro? (impaciente)
- Não estava em casa? Eu sempreem casa. Quase nunca saio. (fazendo bico)
- Mas pode jurar que neste dia não saiu? (alisando a testa com a mão)
- Moço, como vou jurar, sendo uma pessoinha bem honesta, se nem me lembro que dia da semana foi e nem do que fiz? (irritada)
- Mas a senhora tem o costume de passar na Rua X e dobrar e direita, não tem? (coçando a cabeça e pensando em mudar de profissão)
- A sua direita ou a minha? (pergunta natural)
- existe uma direita, senhora! (puxando os cabelos)
- Fácil pro senhor dizer isso que sabe qual é a sua. Eu dobro na minha direita, mas ela pode ser a sua esquerda. meu dilema? (explicando gentilmente, as pessoas às vezes demoram a entender)
- Não existe dilema, senhora. Ajuda se eu disser que foi uma terça-feira? (suspirando)
- Ah! Dia de Strogonoff no restaurante por quilo. Devo ter comido strogonoff! (feliz da vida, esperando por congratulações)
- (Murmúrios ininteligíveis)
- Ah? (inocente)
- Senhora, existe alguém com boa memória que possa nos dizer por onde a senhora andava na noite de 16 de Janeiro? (inicio de apoplexia)
- Ah, tem sim, meu irmão. Ele tem ótima memória. O senhor sabe, ele é uma enciclopédia ambulante e... (alegre)
- Poderia então chama-lo na delegacia? (super esperançoso)
- Pra que? (surpresa)
- Para ele nos dizer por onde a senhora andava. (inchando e avermelhando de maneira alarmante)
- E como ele vai saber? Não mora comigo e o vejo nos fins de semana, mas ele sabe exatamente onde é a direita dele, isso sabe. (começando a se distrair, examinando a sala)
- Senhora... (Cansado)
- Ah? (Distraída, examinando os avisos de não fumar)
- A senhora matou alguém nos últimos meses? (entregando os pontos)
- De verdade? Matar matado? Tipo dando tiro, enfiando faca, envenenando, sufocando? Hi Hi Hi (Animadíssima, fazendo os gestos de esfaquear como no clássico de Hitchcock)
- Sim, senhora, assim mesmo... (melancólico, pensando como tivera sorte até o dia de hoje)
- Ah, assim não. gosto de escrever sobre isso, mas não sou capaz de matar uma mosca. Tá, mosca eu mato. E barata também, porque minha mãe morre de medo, sabe e eu... (explicando amigavelmente)
- A senhora pode ir! (interrompendo grosseiramente)
- Posso? (sorridente) E como saio daqui?
- Saia da sala e vire à esquerda. (respondeu, começando a chorar copiosamente)
- Qual esquerda? (pensativa)


Fim